quarta-feira, janeiro 30

Caneta.

E ai você fica durante longos minutos olhando o cursor “piscar” na tela em branco. Antigamente, (nostalgia, sim) era o papel que aguardava sedento por um rabisco da caneta, nem que fosse uma letra, um traço, um desenho no canto da página que representasse a perturbadora falta de criatividade.
E pensando, você lembra. Tudo que se tinha vontade de escrever ao amigo, ao desconhecido, ao qualquer ou ser importante já foi cantado. Você fica passado de angústia e se rende à uma ponta de inveja do bendito Chico. O Buarque.
Se Djavan não cantasse tanto o amor, você já poderia ter falado muito bem sobre uma Flor de Liz também.
E os poetas? Em sua maioria já em outro plano. Bendito Vinicius de Morais. Contaram todas as rimas, Isso sem falar em cronistas – desses me nego sequer a mencionar um “A”.
E o cursor vai piscando na tela, como se falasse rapidamente, como se te desafiasse “Anda, escreve! Não sabe mais dizer? Qualquer sentimento! Podia até ser sobre amor – que démodé...”.
Será que alguém leria o amor hoje? Será que o cursor pede polêmica?
Tão impessoal a tecnologia (...). Mas útil, pois hoje não sofro mais com a perca de tantas borrachas. Um mistério para tantos e uma realidade desconhecida dos mais jovens.
Enfim, já cantaram todos os meus textos. O que dizer agora?
Eu insisto em uma verdade...
Que dilema dizer hoje, tudo o que dizíamos antigamente.
A caneta, fiel, nunca me cobrou de absolutamente nada. Tão paciente...

segunda-feira, janeiro 7

Quem Matou a Alegria da Verdade?


Destrinchei em plena luz do dia meu cérebro ali mesmo entre os urubus, ambulantes, curiosos, palhaços, artistas e qualquer ser de coração pulsante, deixando que escorressem minhas idéias que foram se esvaindo como em uma nascente que aborta da mais limpa e clara água de forma abundante. Eu gritei minha verdade, lancei meu verbo com uma bala, ali diante de todos manifestei em alto e bom som meus pensamentos, descontentamentos e sonhos sem me importar com a opinião de ninguém. Continuei o percurso pelas praças, esquinas, vielas, sentindo que o olhar dos curiosos tornava-se uma sensação de horror! Com um riso tímido lancei minhas idéias ali, abri minha mente como quem abre a porta de um porão a muito trancado e não me importei com nada. Eu jazia morta e vazia trancando meus monstros e fantasmas em minha mente. A liberdade de minhas criaturas foi silenciosa, porém sei que o impacto foi grandioso, e deixou alguns presentes estupefatos.
Teria eu, portanto quebrado as regras? Queria eu que todos sentissem a mesma sensação de alivio e liberdade que se alojava em meu peito agora. Eu queria que aquela minha atitude, de abrir o coração e de encontrar a coragem de revelar minhas vontades e idéias, se alojasse também na mente dos que ali me administravam com seus olhares desconfiados e surpresos. Senti que um palhaço, que fazia sua apresentação no centro da praça, me mirava admirado, e foi nele que depositei a esperança de encontrar um aliado.
Vi que algumas crianças também tinham um olhar admirado, assim como o palhaço que me olhava com certa necessidade de socorro. Todos ali parados, estáticos conversando com o olhar, com dedos trêmulos e com respirações ofegantes. Era necessário esperar somente, e acabei por agradecer a mureta que havia atrás de mim, e me encostei à espera de que aqueles olhos arregalados e delicados gestos de mão se manifestassem como em um espetáculo de libertação e novidade.
Foi o som das caixas de engraxate que ecoaram primeiramente, quando foram largadas das mãos das crianças. Seus clientes, que se encontravam sentados como seres da mais suprema importância, empunhando seus jornais e tentando convencer que as noticias do mundo surtiam efeitos em suas mentes poucos brilhantes, ficaram estupefatos e sem entender o que se passava. Alguns questionaram a ação das crianças, que deram de ombros e se moveram em direção ao palhaço que se encontrava ainda ao centro da praça. Os homens com seus sapatos borrados pela metade com a graxa preta e não lustrada replicaram o retorno dos pequenos e atuais autênticos idealistas, que continuaram a ignorar os gritos e exigências de que seus trabalhos deveriam ser finalizados. Chegava a ser tola a atitudes daqueles burgueses incompetentes que sacudiam os trocados em suas mão clamando retorno aos meninos e deixando que seus jornais absorvessem a graxa esparramada no chão.
Era digna a cena de ver o sorriso de alivio no olho das crianças que se aproximavam daquele palhaço estático e confuso que lançava seu olhar agora ás mulheres que se encontravam na feira próxima, erguendo em suas mãos, creio eu que durante todo o espetáculo sem perceber, pés de alface de verde reluzente. Era um cenário que se revelava por quadros, de fácil acompanhamento e que se deslizava como que em filme em câmera lenta.
A atenção agora era voltada para o palhaço, que por alguns minutos contemplou o chão, como se estivesse se perguntando qual era a sua necessidade real, ou acredito eu, de qual era a sua realidade, de onde estava sua alegria além daquela maquiagem risonha permanente. Sem se mover muito e sem se preocupar com as atenções que lhe foram atribuídas naquele exato momento, e com a íris dos olhos brilhando, o palhaço tirou de seu bolso, um pequeno espelho que somente era possível visualizar seus olhos e que era necessária uma tremenda maratona para que o seu rosto fosse enfim refletido. Com certa demora, ele passou a vislumbrar seus traços, de forma atenciosa e detalhista, que aos poucos foi ganhando um ar de admiração que por fim transformou-se em tristeza e acabou numa súbita ação doentia de fúria que foi concluída com cacos do pequeno espelho que foi lançado ao chão.
Os olhares dos curiosos tornaram-se agora perplexos, o silêncio agora era quase que uma necessidade, e até as mulheres na feira próxima perceberam o ridículo de estarem a tanto tempo segurando pés de alface, que na mesma hora os largaram de forma a chamarem menos atenção possível.
Meu olhar fincou diretamente nas crianças, que não sei se mencionei, eram três meninos magros, de vestes simples e sujas devido a precoce profissão de engraxate. Foram os únicos que continuaram a agir com naturalidade diante de toda a situação, e foram os únicos que tiveram coragem de ficar próximos do palhaço que agora parecia sucumbir uma espécie de dor, que finalizo eu como a maior demonstração de angústia já vista – o pobre não sabia quem era e não tinha nunca na vida imposto suas idéias, destrinchado seu cérebro, e tinha se acostumado à idéia de sorrir e fazer sorrir sem critérios – sua angústia, suponho, era a morte, era como se ele se identificasse com os cacos que se encontravam ali no chão.
Eu senti vontade de atravessar a praça e dizer-lhe aos ouvidos que eu também já tinha sentido tudo aquilo e que era a oportunidade ideal de deixar que ele libertasse todos aqueles monstros e fantasmas que o derrotavam não somente naquele instante, mas que também estavam alojados em sua mente e coração por toda a vida. Eu sabia que não devia tomar esta atitude e tenho certeza que os três meninos também acreditavam que agora era uma questão de espera. De repente aquele pequeno momento de telepatia entre eu e as crianças foi quebrado por uma voz quase rouca, que parecia calada a um bom tempo e que necessitava de atenção. Eu desencostei da mureta e voltei meus olhos à procura da voz que vinha do palhaço que agora parecia emanar cansaço.
“Aqui todos me chamam de palhaço, o ridículo sem causa! Nasci palhaço e assim vou morrer... palhaço! Não escolhi minha origem, meu corpo e nem minha terra, aqui desta jornada minhas únicas escolhas são a praça e o riso, que a muito não me sai de forma natura; ele vem pintado em meu rosto, carimbado como se fosse pra sempre. Eu sou um palhaço que tem por toda hora vontade de chorar... Eu que nunca te fiz mal, te vejo me olhar com ar de desdém, não te peço trocado sem te contribuir com alegria e vejo que da moral somos todos desconhecidos. Sou da rua porque não tenho a mesma sorte que você que me olha e me lança preconceito enquanto engraxa seus fabulosos sapatos. Eu sofro, porque dessas crianças, por mais que eu queira não arranco um sorriso que venha da alma porque elas são como eu...Sem escolha! Nunca consegui lançar minhas idéias porque em partes nunca me apaixonei por elas, e é de se duvidar que eu ainda tenha causas, posto que agora vi o cadáver que sou...o espelho que se partiu como a minha verdade. Mas agora que eu consegui lembrar que tenho escolhas, eu vou me libertar das grades que me colocaram e vou tirar de dentro do meu peito o resquício de vontade que ainda me sustenta em manter vivas as minhas idéias – cansei de me acomodar no que me foi atribuído, e quero minha verdade.”
Assim que o silêncio tomou conta da cena e as pessoas passaram a se entreolhar como se estivessem acordando para a realidade que a muito adormecia, o palhaço depois de muito olhar a sua volta se abaixou e pegou o maior caco do espelho partido e com o gorro que ele utilizava, calmamente limpou toda a maquiagem e todo sorriso que antes ele tinha como um carimbo. Terminado todo o processo de limpeza de seu rosto, ainda se enxergava um sorriso de forma sublime, mas agora completamente verdadeiro, e a única coisa que o caracterizava era um nariz de borracha vermelho. Sentia-se um riso aliviado no rosto das crianças que pareciam que guardavam aquele momento com muita ansiedade.
Eu me senti completa, como se todas as minhas idéias agora tivessem o direito de ganhar cor e vida, mas enquanto eu observava a cena também senti a morte da verdade. De dentro da massa de curiosos, um alguém, sem nome, sem procedência e sem memória afugentou aquela plenitude e com um golpe de velocidade e uma machadinha matou a verdade. Ali estendido estava o palhaço, caído fazendo contraste entre a sua palidez e a grande poça de sangue que foi lentamente envolvendo sua carcaça magra. Procurei num golpe de vista e não encontrei as crianças que na hora do susto devem ter corrido de medo. Ficou de repente o clima da crueldade, da incerteza e da perplexidade, que foi somente quebrado pelo suspiro do alucinado que cuspiu em palavras a razão da crueldade – “A mente do homem é doente, mata-se a verdade, mata-se o sonho e a idéia fora do padrão para não se sofrer com a certeza. Prefiro que continuem a me pintar a alegria do que me fazer procurá-la por toda a vida.”
Não se ouviu mais um único murmúrio, e todos se prontificaram a fingir que ali não jazia o morto. Foi quando entendi, que antes de seguirem minha conta de dilacerar o cérebro e se lançar à verdade e a idéia, a quem prefira destroçar a esperança de autenticarmos a essência.
Abaixei-me perto da mureta e senti a dor da perda por algum tempo. Depois de muito pensar, me levantei e fui até a feira próxima procurar as partes das idéias que soltei ao vento enquanto destrinchava o meu cérebro antes de tudo isso acontecer. Muitas delas, não estavam mais lá soltas no ar, perguntei ao moço da barraca de alfaces se sabia onde estavam, sem me olhar ele disse que muitas haviam sido recolhidas durante o tumulto na praça. Conclui-se então que a verdade e a idéia mão morrem enfim, permanecem adotadas em algum lugar.
Em memória do palhaço.

Paula Barboni

28.04.06


** A Quase um ano escrevi esse texto e poucas pessoas tinham lido. Fiquei pensando porque nunca tinha públicado...Mas enfim, aí está.