“Não te enganes. A vida vai tratar-te mal. Portanto, se quiseres viver tua vida, vai e roube-a.”
segunda-feira, dezembro 22
Tolices
Ficar preso ao que poderia ter sido
Alimentar a espera.
Achar que menta e hortelã têm o mesmo gosto.
É tolice se enganar por um dia
Guardar o que não convém
Acreditar que é só uma crise
Ter calma no meio do tiroteio.
É tolice achar que sempre vai ficar mais doce
Que o amargo é um contraponto
Que a tragédia nunca é grega
Que a tristeza é pra sempre
É tolice fazer mil promessas de ano novo
Fazer regime pra aproveitar o natal
Comprar presentes pra aumentar a moral
Ser um artista no convívio estranho.
É tolice se magoar por estar sozinho
Sorrir por simpatia
Brindar o que não emociona
Beijar por força da rotina
É tolice, de fato, se aceitar um tolo.
Bom 2009!
segunda-feira, novembro 24
Ciclo
Foi envolvendo aos poucos, como se fosse dona de tudo. Espessa, forte e tranqüila.
Cegou os sentidos. Fez os poros transpirarem e os olhos lacrimejarem.
Foi única.
E quando tudo parecia eterno, ela foi esfriando, rachando os lábios, devorando os cabelos.
Manteve-se mais fria.
Foi rachando a pele, paralisando os olhos. Fez com que virassem vidros. Dois globos cristalinos com o brilho congelado. A menina dos olhos sentiu medo e fugiu. Quebraram-se os dois, esfacelados em cacos opacos.
A pele virou gelo, e se desprendeu. Outros cacos para se misturarem. Tão finos e leves levados por ela, a brisa, que se foi em uma nuvem comprida, com um rastro único.
Todo gelo derrete. Evapora. Vai até o alto e volta.
É assim que deve ser.
segunda-feira, novembro 17
Um Samba pra Daqui a Pouco
Não era animado nem melado
Era um samba assim
Meio de lado
Meio de canto.
Era um samba boêmio, com um refrão careta.
Eu cantei um samba, toda sem graça
Sem repique, sem cascata.
Todo diferente
Com uma letra, imponente.
Uma melodia persistente.
Eu gravei um samba pra esse moço.
Meio bossa, meio reggae.
Meio meu.
Meio dele.
E vi que todo mundo cantava.
Eu fiz um samba, pra cantar sozinha na praça.
Pra sentir o choro solitário.
Pra lembrar do cheiro da nuca
Que eu sentia enquanto dançava.
Eu fiz um samba
Com uma melodia mutável.
Com um acorde perdido.
Pra cantar bem baixinho.
Eu aviso quando eu voltar
Pra ter certeza
De que não vou deixar um samba assim
Tão cheio de sentimento
Morrer enfim.
quinta-feira, outubro 2
sexta-feira, agosto 29
Revolução Social
Um duelo aparente, que distraí perante a imoralidade.
Na política é assim, os ataques servem de defesa, e mesmo de forma perturbadora, não são comparados à nenhum tipo de crime ou agressão. Apenas armas, caracterizadas como “brancas”, de defesa e a serviço de uma suposta “verdade”.
Talvez, se houvesse uma distorção dos fatos sociais, e usássemos das mesmas armas em nome de uma revolução cultural, pudéssemos reverter à massificação alienante que em vivemos. Talvez a passividade não se encante por sua própria “passividade”.
quinta-feira, julho 31
Lança
Eu deparo com medo nos momentos mais saudositas.
Eu embaralho a sorte e a desfarço de curinga.
Eu jogo as cartas, antes que elas me joguem o futuro.
Eu conspiro a data para ignorar o tempo.
Eu encontro o futuro abraçada com o presente.
Eu me lanço ao novo sem segurança de queda.
Eu abraço a graça para não rir sozinha
Eu envelheço todos dias.
E da mesma forma brinco de nascer.
Eu manobro todos os meses,
Mas comemoro uma vez por ano... porque um registo administra assim.
(...)
E não importa.
Eu brinco de moldar a beleza do que já foi moldado.
Eu brinco de arte, como quem troca de roupa.
Eu brinco de brilho, quando me descubro parte de uma estrela.
Eu brinco de ser eu, quando persisto no que sempre quis ser... eu mesma.
Paula.
quinta-feira, julho 3
Para "Musicar."
Eu andei por ruas sem nome
Pra esquecer de voltar
eu tropecei na miséria mais crua
que possa encontrar
Eu prometi parar de fumar
Pra me sentir um herói
quem sabe menos freguês
Eu entrei em mil transes mentais
Rezei o mantra, todo em inglês
Eu não quero nada!
Nem um copo de cerveja, obrigado.
Eu não quero nada. Nada!
Talvez uma vódka
Quem sabe, até três
Só quero me embriagar
E fugir de mim mesmo
Pra me encontrar de vez.
Todo dia se abre um sol
Sorrindo, quem sabe
pra me ofuscar
Os olhos cerrados da noite
Ainda vão, me acompanhar
Eu protejo meu nome da escória
Não quero render história
Mas em meu nome eu vou me embriagar
Da cobrança, dos filhos na escola.
Na esperança
De que vou me educar.
Eu não quero nada.
Nem mesmo uma dose, obrigado.
Eu não quero nada. Nada!
Nem uma filosofia barata.
Que me faça levar uma vida exata.
segunda-feira, junho 23
Orgulho
Ela só queria pedir desculpas.
Por erros ou acertos.
Por todas as culpas.
Ela nunca erraria menos
Ela nunca seria egoísta.
Ela só queria reconhecer os erros.
Ela também esperava desculpas
Ela também acordou cedo.
E por fim seguiu por ruas.
Não foi por medo de errar
Nem por sentir-se com medo
foi simplesmente por não se encontrar.
Ela não sabe como faria.
E aceita o medo da falha.
Mas sabe que não causou tudo sozinha.
Todos os dias se morre.
Todos os dias se nasce
Ela sabe que não é a mesma de ontem.
É só rever o reflexo.
Ele condena sua nova face.
Ele te lembra do ultimo falecimento.
Do seu sorriso que hoje é recém chegado.
Mas a alma...
Essa se aninha à todas as novas vidas.
Ela segue num caminhar eterno e jovem.
A menos, que Ela, nunca consiga ouvir e dizer - “desculpe”.
quarta-feira, maio 28
Dito e Dita
quarta-feira, abril 30
Foco
O FOTOGRAFO, 26 anos, moreno, alto, usa óculos, está sentado do outro lado da rua no banco de uma pequena pracinha, e anima-se ao vê-la sair.Ele posiciona a câmera nas mãos e acompanha o trajeto dela com a lente.
Ela passa pela banca de jornal. Avista o velho Sr João, como sempre sorridente e perguntando se levaria uma revista. Ela apenas nega com a cabeça, mas sem perder o sorriso de gratidão.Sr. João retribui.
Do outro lado da praça, sentado em um banco bonito, branco e desconfortável, como em todas as manhãs está o Fotografo.
Nunca a perde de seu foco, Nunca deixa de decorar seus passos e nunca esquece do seu perfume, o mesmo que ele nunca sentiu. Sabe todas as sua manias, inclusive a forma como mexe nos cabelos e brinca com as mãos enquanto caminha distraída, curiosa, assim como uma criança impressionada com o mundo. Ele só não conhece a sua voz – Deve ser doce, suave, aveludada como só poderia ser – Ele pensa e sussurra baixinho “Bom dia!”
Mas as fotos. Quantas pode-se imaginar, sendo elas de todos os ângulos, formas, cores e modos. A paisagem perfeita, a fotografia perfeita. Eram as suas obras de artes, expostas só para si, com tanto amor e ternura, que nenhum artista, por mais que quisesse poderia traduzir. Ele sempre a olhava, de longe, rubro e com o coração palpitante. No pico da emoção, limitava-se a acender um cigarro, que nunca era tragado por inteiro, logo distraia-se com a sua inspiração, que caminhava tranqüilamente pela praça.
Ela continuava andando, olhava tudo, conversava gentilmente com todos. A praça que sempre freqüentava era movimentada, típica de cidade do interior, e como era época de férias todos saiam para tomar um ar fresco, conversar, apreciar o dia, etc.
Ela pára na frente de uma loja de CD’s e fica olhando a vitrine.
Ele observa pelas lentes da câmera curioso para saber qual seria o cd da vez. Qual seria o tema musical do dia? Ele tinha absoluta certeza que o gosto da moça era requintado, parecia uma apreciadora de cultura, mesmo que ninguem lhe contasse ou ele tivesse certeza, assim mesmo ele tinha.
Logo em frente, havia uma carrocinha de sorvetes, de variados sabores. Ela sempre parava ali depois de olhar o que queria. Era a ultima parada antes de voltar para casa. O sabor sempre o mesmo: Chocolate.
O FOTOGRAFO continuava com a maquinas nas mãos sentado no banquinho da praça. Tentava tomar coragem para um dia convidá-la a tomar um sorvete. Mas esse pensamento lhe percorria pela mente a muito tempo, e a coragem nunca era muito presente, chegava a sentir as mãos frias só de pensar. E como se fosse uma necessidade sussurrava para si mesmo mais uma vez - “Todo dia ela faz tudo sempre igual...”
E assim passavam os dias, uns ensolarados, outros mais chuvosos, mas o “namorico” ali permanecia, fiel, intacto...
Até que em um dia qualquer Ela muda o trajeto, não estaria certo quebrar a rotina. Isso trazia angustia ao Fotografo, que parecia sentir-se perdido.
Ela caminha e pára na carrocinha de sorvete. Pede duas casquinhas do mesmo sabor. Se dirige até a faixa de pedestres e atravessa na direção do rapaz.
O FOTOGRAFO fica desesperado e joga a maquina no meio das plantas da pracinha - E se ela quiser tirar satisfações? Eu posso dizer que a amo todos os dias? Devolvo as fotos? Tomo o sorvete? Viro e vou embora? Viro e vou embora? Vou embora? - Ele pega a máquina e vai embora sem nem olhar para trás.
Ela chega no banco da pracinha com as duas casquinhas na mão e fica olhando para os lados com um ar confuso.
No dia seguinte o banco da praça estava vazio. O dia cinza.
Nesse dia Ela não tomou sorvete.
Mais um dia, o banco vazio. Ela não tomou sorvete.
Terceiro dia. Ela não tomou sorvete...
Uma semana depois, ela caminha pensativa, não ouve aos bom dias de sempre, parece até um pouco triste. Acaba por render-se ao sorvete, mas compra de outro sabor: Creme. Continua caminhando e atravessa a rua em direção ao “banco de praça do Fotografo”. Senta-se e observa o tempo passar.
No mesmo instante, em sua casa, o FOTOGRAFO está sentado no chão dentro do seu estúdio de fotografia. Existem vários varais com as fotos da “ELA” em preto em branco. E mais uma vez ele sussurra “Tive medo de revelar o amor...”
Paula Campos Barboni, Junho de 2007.
Inspirado na obra “Tangerine Girl” Por Rachel de Queiroz
quarta-feira, abril 23
O Espetáculo Não Pode Parar
De longe se via um aceno. Que calor e conforto. Que delírio.
De pés descalços, alcança-se além do sentimento, como se seu corpo fosse um violino de afinação perfeita.
A menina, outrora tímida, chora e ri em descompasso sem culpas e vergonha.
Espalha-se como se fosse o todo e eleva-se até que alcance uma essência tão perfeita, que aos poucos torna-se nada diante de quem vê.
Não existem regras, caminhos ou diálogos perfeitos. O riso, torna-se arte, assim como o choro e os sons imperceptíveis que não eram combinados.
A vida tornou-se fácil, cheia de autos e baixos, mas que ao todo, ainda sente-se o conforto de se conhecer o final antes de tudo se esvair. O que atrai uma ponta de ansiedade.
E como uma criança, ela espera sentada, de pernas cruzadas que todos se vão. Lembra-se de como é mágico estar ali. Imagina-se o centro e o complemento, mesmo não sabendo exatamente que é o seu próximo.
Muitos a agradecem, dizendo como é especial tê-la diante de seus olhos.
As luzes se apagam. O alivio mistura-se com vazio.
As cortinas se fecham.
Foi assim que eu senti o teatro pela primeira, deixando que o mesmo me sentisse com mesma intensidade.O palco é uma troca - Você empresta seu corpo e a arte lhe devolve com a alma.
segunda-feira, abril 14
"Contra-Fluxo"
A guerra constante por espaço
Cansaço por tentar agradar demais.
Medo por agradar de menos.
Manias de querer amar de mais.
Agonia de acabar sozinho.
A vida cansa quando você acha que tudo nunca foi o que achava ser.
E medo por não sustentar tudo que é.
As pessoas cansam porque tem sempre pedras a atirar,
E mãos de menos a estender.
É cansativo se aceitar como é,
E sem motivo se perder o que sempre foi.
É muito triste se achar sempre menos.
E arriscado se considerar o melhor.
cansaço por acreditar demais,
e solitário por crer de menos.
Causam traumas o orgulho em excesso,
causam saudades e despreendimento.
Não importam os motivos do mundo,
você sempre tem medo da certeza de não ser feliz sozinho.
Moral da história - Não aguento mais ser sempre os alvo dos mesmos motivos. Não fui eu que fabriquei a falta de compreensão do próximo...
quinta-feira, abril 3
Ela se Chama Susy!
Ficamos a tarde toda debatendo um nome - Como é difícil dar um nome a um bichinho de estimação. Eu encarava isso com tremenda concentração. Tinha de ser um nome que combinasse com ela, que fosse gracioso, feminino e que soasse bem aos ouvidos. Tinha que ser um nome que falasse totalmente por ela, afinal, ela nunca falaria, era uma cadelinha.
Depois de tantos nomes sugeridos, um restou na lista, era Suzy. Curto, simples, feminino e engraçadinho, foi nessa conclusão que todos nós chegamos. A pequena cadelinha, que mais se parecia com um ratinho, se chamaria Suzy. E não qualquer “Suzy”. Preste atenção na escrita - Com “Z” e “Y”! Capricho meu, frescurinha para a minha mais nova amiga.
E que amiga. Me acompanhou em cada momento. Cada nova retomada, cada problema, cada partida... E lá estava ela, quando muitos já não estavam, sempre me olhando nos olhos. O amor mais sincero que se pode sentir.
Amor que era demonstrada até nos sapatos comidos, nas canetas desaparecidas, dos latidos agudos, da teimosia de subir na cama, etc.
Nunca obedecia, praticamente uma porta de tão surda. E surda ficou realmente nos últimos anos.
E hoje, sem perceber, eu coloquei ração na sua tigela.
Ainda não me acostumei com o silêncio quando o caminhão de lixo passa. Nem quando alguém dá aqueles gritos no portão, pra irritar a gente mesmo.
Não assimilei a idéia ainda de que não preciso mais mandar a senhorita descer do sofá, nem que é preciso ver se ainda tem água na vasilha. Nunca imaginei que sentiria tantas saudades.
Você passa 18 anos com aquela coisinha que você pegou tão miúda no colo e não entende porque foi tão rápido.
O mais saudoso é que um dia, não sei bem quando, vão me perguntar?
- você já teve cachorro?
E eu vou sorrir... Pra contar tudo isso de novo.
quarta-feira, março 12
Do Além...
Eu fui o cinema gritante, a política utópica. Eu fui um peixe dentro e fora do aquário.
Todos aqueles que por instantes, se disseram cineastas, poucos me convenceram, muitos cuspiram no antigo-cinema-novo. E eu respirei fundo, tão fundo que quase fiquei bronco (irônico).
Fiz careta á burguesia, e brinquei com a história popular, que amei como quem ama a sua própria história – ela também era minha, era sua e nossa.
Disparei palavras disparadas unicamente à revolução e com isso as fiz serem revolucionárias, e foram poucos, muitos poucos que sentiram a Terra entrar em Transe.
Mas politicamente falando, enquanto eu sonhava com uma revolução maior que meu ego, percebi que toda a percepção social estavam entre Deus e o Diabo nesta terra de sol, que não bastavam apenas palavras, e sim utilizar-se das Armas do povo, mesmo que para isso houvessem cabeças cortadas, e isso poderia demorar por toda a idade da terra.
Meu olho, minha câmera. Hollywood o lixo desnecessário, é a prisão pelas fórmulas prontas, e se existiu o cinema novo brasileiro foi para nos libertar, para sermos nós mesmos, com toda uma cultura, com toda nossa raça...
Eu criei pra revolucionar.
E se hoje eu estive por aí, teria ficado louco, doente, maluco.
Vê esse mercado industrial doente.
Vê essa música industrial doente.
Vê o cinema nacional se derretendo ao mercado industrial doente.
Eu não estou aí. Mas ainda há quem esteja vivendo no que se passou.
E hoje, o assunto é cinema. Ainda é cinema. Vai ser pra sempre cinema.
Um grito,
Por Paula. Por Glauber.
quarta-feira, janeiro 30
Caneta.
E pensando, você lembra. Tudo que se tinha vontade de escrever ao amigo, ao desconhecido, ao qualquer ou ser importante já foi cantado. Você fica passado de angústia e se rende à uma ponta de inveja do bendito Chico. O Buarque.
Se Djavan não cantasse tanto o amor, você já poderia ter falado muito bem sobre uma Flor de Liz também.
E os poetas? Em sua maioria já em outro plano. Bendito Vinicius de Morais. Contaram todas as rimas, Isso sem falar em cronistas – desses me nego sequer a mencionar um “A”.
E o cursor vai piscando na tela, como se falasse rapidamente, como se te desafiasse “Anda, escreve! Não sabe mais dizer? Qualquer sentimento! Podia até ser sobre amor – que démodé...”.
Será que alguém leria o amor hoje? Será que o cursor pede polêmica?
Tão impessoal a tecnologia (...). Mas útil, pois hoje não sofro mais com a perca de tantas borrachas. Um mistério para tantos e uma realidade desconhecida dos mais jovens.
Enfim, já cantaram todos os meus textos. O que dizer agora?
Eu insisto em uma verdade...
Que dilema dizer hoje, tudo o que dizíamos antigamente.
A caneta, fiel, nunca me cobrou de absolutamente nada. Tão paciente...
segunda-feira, janeiro 7
Quem Matou a Alegria da Verdade?
Teria eu, portanto quebrado as regras? Queria eu que todos sentissem a mesma sensação de alivio e liberdade que se alojava em meu peito agora. Eu queria que aquela minha atitude, de abrir o coração e de encontrar a coragem de revelar minhas vontades e idéias, se alojasse também na mente dos que ali me administravam com seus olhares desconfiados e surpresos. Senti que um palhaço, que fazia sua apresentação no centro da praça, me mirava admirado, e foi nele que depositei a esperança de encontrar um aliado.
Vi que algumas crianças também tinham um olhar admirado, assim como o palhaço que me olhava com certa necessidade de socorro. Todos ali parados, estáticos conversando com o olhar, com dedos trêmulos e com respirações ofegantes. Era necessário esperar somente, e acabei por agradecer a mureta que havia atrás de mim, e me encostei à espera de que aqueles olhos arregalados e delicados gestos de mão se manifestassem como em um espetáculo de libertação e novidade.
Foi o som das caixas de engraxate que ecoaram primeiramente, quando foram largadas das mãos das crianças. Seus clientes, que se encontravam sentados como seres da mais suprema importância, empunhando seus jornais e tentando convencer que as noticias do mundo surtiam efeitos em suas mentes poucos brilhantes, ficaram estupefatos e sem entender o que se passava. Alguns questionaram a ação das crianças, que deram de ombros e se moveram em direção ao palhaço que se encontrava ainda ao centro da praça. Os homens com seus sapatos borrados pela metade com a graxa preta e não lustrada replicaram o retorno dos pequenos e atuais autênticos idealistas, que continuaram a ignorar os gritos e exigências de que seus trabalhos deveriam ser finalizados. Chegava a ser tola a atitudes daqueles burgueses incompetentes que sacudiam os trocados em suas mão clamando retorno aos meninos e deixando que seus jornais absorvessem a graxa esparramada no chão.
Era digna a cena de ver o sorriso de alivio no olho das crianças que se aproximavam daquele palhaço estático e confuso que lançava seu olhar agora ás mulheres que se encontravam na feira próxima, erguendo em suas mãos, creio eu que durante todo o espetáculo sem perceber, pés de alface de verde reluzente. Era um cenário que se revelava por quadros, de fácil acompanhamento e que se deslizava como que em filme em câmera lenta.
A atenção agora era voltada para o palhaço, que por alguns minutos contemplou o chão, como se estivesse se perguntando qual era a sua necessidade real, ou acredito eu, de qual era a sua realidade, de onde estava sua alegria além daquela maquiagem risonha permanente. Sem se mover muito e sem se preocupar com as atenções que lhe foram atribuídas naquele exato momento, e com a íris dos olhos brilhando, o palhaço tirou de seu bolso, um pequeno espelho que somente era possível visualizar seus olhos e que era necessária uma tremenda maratona para que o seu rosto fosse enfim refletido. Com certa demora, ele passou a vislumbrar seus traços, de forma atenciosa e detalhista, que aos poucos foi ganhando um ar de admiração que por fim transformou-se em tristeza e acabou numa súbita ação doentia de fúria que foi concluída com cacos do pequeno espelho que foi lançado ao chão.
Os olhares dos curiosos tornaram-se agora perplexos, o silêncio agora era quase que uma necessidade, e até as mulheres na feira próxima perceberam o ridículo de estarem a tanto tempo segurando pés de alface, que na mesma hora os largaram de forma a chamarem menos atenção possível.
Meu olhar fincou diretamente nas crianças, que não sei se mencionei, eram três meninos magros, de vestes simples e sujas devido a precoce profissão de engraxate. Foram os únicos que continuaram a agir com naturalidade diante de toda a situação, e foram os únicos que tiveram coragem de ficar próximos do palhaço que agora parecia sucumbir uma espécie de dor, que finalizo eu como a maior demonstração de angústia já vista – o pobre não sabia quem era e não tinha nunca na vida imposto suas idéias, destrinchado seu cérebro, e tinha se acostumado à idéia de sorrir e fazer sorrir sem critérios – sua angústia, suponho, era a morte, era como se ele se identificasse com os cacos que se encontravam ali no chão.
Eu senti vontade de atravessar a praça e dizer-lhe aos ouvidos que eu também já tinha sentido tudo aquilo e que era a oportunidade ideal de deixar que ele libertasse todos aqueles monstros e fantasmas que o derrotavam não somente naquele instante, mas que também estavam alojados em sua mente e coração por toda a vida. Eu sabia que não devia tomar esta atitude e tenho certeza que os três meninos também acreditavam que agora era uma questão de espera. De repente aquele pequeno momento de telepatia entre eu e as crianças foi quebrado por uma voz quase rouca, que parecia calada a um bom tempo e que necessitava de atenção. Eu desencostei da mureta e voltei meus olhos à procura da voz que vinha do palhaço que agora parecia emanar cansaço.
“Aqui todos me chamam de palhaço, o ridículo sem causa! Nasci palhaço e assim vou morrer... palhaço! Não escolhi minha origem, meu corpo e nem minha terra, aqui desta jornada minhas únicas escolhas são a praça e o riso, que a muito não me sai de forma natura; ele vem pintado em meu rosto, carimbado como se fosse pra sempre. Eu sou um palhaço que tem por toda hora vontade de chorar... Eu que nunca te fiz mal, te vejo me olhar com ar de desdém, não te peço trocado sem te contribuir com alegria e vejo que da moral somos todos desconhecidos. Sou da rua porque não tenho a mesma sorte que você que me olha e me lança preconceito enquanto engraxa seus fabulosos sapatos. Eu sofro, porque dessas crianças, por mais que eu queira não arranco um sorriso que venha da alma porque elas são como eu...Sem escolha! Nunca consegui lançar minhas idéias porque em partes nunca me apaixonei por elas, e é de se duvidar que eu ainda tenha causas, posto que agora vi o cadáver que sou...o espelho que se partiu como a minha verdade. Mas agora que eu consegui lembrar que tenho escolhas, eu vou me libertar das grades que me colocaram e vou tirar de dentro do meu peito o resquício de vontade que ainda me sustenta em manter vivas as minhas idéias – cansei de me acomodar no que me foi atribuído, e quero minha verdade.”
Assim que o silêncio tomou conta da cena e as pessoas passaram a se entreolhar como se estivessem acordando para a realidade que a muito adormecia, o palhaço depois de muito olhar a sua volta se abaixou e pegou o maior caco do espelho partido e com o gorro que ele utilizava, calmamente limpou toda a maquiagem e todo sorriso que antes ele tinha como um carimbo. Terminado todo o processo de limpeza de seu rosto, ainda se enxergava um sorriso de forma sublime, mas agora completamente verdadeiro, e a única coisa que o caracterizava era um nariz de borracha vermelho. Sentia-se um riso aliviado no rosto das crianças que pareciam que guardavam aquele momento com muita ansiedade.
Eu me senti completa, como se todas as minhas idéias agora tivessem o direito de ganhar cor e vida, mas enquanto eu observava a cena também senti a morte da verdade. De dentro da massa de curiosos, um alguém, sem nome, sem procedência e sem memória afugentou aquela plenitude e com um golpe de velocidade e uma machadinha matou a verdade. Ali estendido estava o palhaço, caído fazendo contraste entre a sua palidez e a grande poça de sangue que foi lentamente envolvendo sua carcaça magra. Procurei num golpe de vista e não encontrei as crianças que na hora do susto devem ter corrido de medo. Ficou de repente o clima da crueldade, da incerteza e da perplexidade, que foi somente quebrado pelo suspiro do alucinado que cuspiu em palavras a razão da crueldade – “A mente do homem é doente, mata-se a verdade, mata-se o sonho e a idéia fora do padrão para não se sofrer com a certeza. Prefiro que continuem a me pintar a alegria do que me fazer procurá-la por toda a vida.”
Não se ouviu mais um único murmúrio, e todos se prontificaram a fingir que ali não jazia o morto. Foi quando entendi, que antes de seguirem minha conta de dilacerar o cérebro e se lançar à verdade e a idéia, a quem prefira destroçar a esperança de autenticarmos a essência.
Abaixei-me perto da mureta e senti a dor da perda por algum tempo. Depois de muito pensar, me levantei e fui até a feira próxima procurar as partes das idéias que soltei ao vento enquanto destrinchava o meu cérebro antes de tudo isso acontecer. Muitas delas, não estavam mais lá soltas no ar, perguntei ao moço da barraca de alfaces se sabia onde estavam, sem me olhar ele disse que muitas haviam sido recolhidas durante o tumulto na praça. Conclui-se então que a verdade e a idéia mão morrem enfim, permanecem adotadas em algum lugar.
Em memória do palhaço.
Paula Barboni